Como você brinca de índio?
Espetáculo composto por alunos das graduações em Dança da UFC aborda temática indígena.
Ao se entrar na sala escura, ouvem-se várias vozes chorando alguma dor que imediatamente trazem o público ao clima do espetáculo. Gritos de diferentes vozes são acompanhados de prantos pesarosos e cortam o silêncio do espaço, cuja única fonte de iluminação se resume a um feixe de luz que parte do teto e forma um círculo branco no linóleo preto do chão. Os limites do palco de arena construído para a cena são dados à medida em que o público entra e se acomoda em finos colchonetes dispostos de maneira a formar uma grande roda. No centro desta, o vermelho forte de um amontoado de pequenas estruturas de formato esférico une-se aos feixes de luz e reflete uma cor que lembra objetos de extremo valor, como aqueles montes de jóias que, em histórias hollywoodianas, os piratas escondiam em cavernas.
As sementes de falso pau brasil, se Pau Brasil fossem, realmente seriam mais valiosas, monetariamente falando. Porém, quando o objetivo é questionar as formas de representação do povo indígena brasileiro na contemporaneidade, o “falso” acaba por agregar debate ao tema. Após ser explorada de forma exaustiva pelos colonizadores europeus, portugueses em sua maioria, a madeira do Pau Brasil hoje é raridade na vegetação natural do País, enquanto que os povos cuja mão de obra escravizada fora utilizada para sua extração, os nativos brasileiros conhecidos de maneira genérica como “índios”, ainda lutam para ter seus direitos respeitados.
Nas artes, as discussões em torno das questões indígenas tomam corpo aqui e ali. Este é o caso do espetáculo de dança “Viração”, que tem como mote a maneira como estes povos são representados por nós desde a educação básica até a idade adulta. Para o diretor do espetáculo, João Paulo Barros, levar o debate político e ideológico para o palco é algo que talvez contribua para a desmarginalização e inclusão desta minoria na sociedade, onde mesmo sua existência é tantas vezes desconsiderada. “Por muito tempo, ouviu-se que no Ceará não havia indígenas. Então, nós fomos aprofundando estas questões e tentando pesquisar os indígenas de Fortaleza, onde observamos muitos rostos que se assemelham aos indígenas, mas, raramente, alguém se autodeclara como tal”, explica o artista, quando perguntado sobre a origem do tema. “(…) Mesmo as pessoas que têm muita similaridade, que tem o biotipo do indígena, não se reconhecem assim. Então, a gente foi pesquisando essas indigeneidades fortalezenses. (Fomos nos perguntando:) ‘Tem índio aqui? Se tem, será que ele se reconhece?’”, indaga João Paulo.
Levantando uma série de questionamentos, que vão desde o nome genérico utilizado para se referir a mais de 305 etnias, contendo 274 línguas indígenas, (dados do Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE, de 2010) até a forma de vestimenta restritiva que se imagina serem utilizadas por estes povos; o grupo de artistas levanta um argumento consistente e importante na atual conjuntura sociopolítica brasileira. A pergunta que ecoa nos corpos dos bailarinos e move todo percurso do espetáculo é curta, porém pode se desdobrar em uma série de incertezas: “O que é ser índio hoje?”.
“A partir disso, de como é o índio na sociedade atual (um índio que usa tênis, que tem celular), de ideias preconcebidas que a gente tem, como a de que ‘índio tem que viver no mato mato’, entende? Ele está fora da sociedade… E não é isso! Com esta criação, fomos nos encontrando com os nosso próprios preconceitos e tentando desdobrá-los em um trabalho cênico. No final, talvez a gente não fale sobre índios, mas das nossas apreensões sobre o que é ser índio”, explana o diretor.
Atualmente, ainda é raro encontrarmos nomes reconhecidos pelo mundo da arte cuja origem seja declarada indígena e, quando assuntos relativos à sua cultura são trabalhados por pessoas que não se reconhecem com tal etnia isso se torna uma abordagem delicada e que merece profundas reflexões.
Dar voz ao índio se faz urgente, tanto no âmbito sociopolítico, quanto nas artes de maneira geral. Para João Paulo, a participação efetiva de indígenas nos meios artísticos, de forma direta, é importante para que possamos reconhecê-lo como o mesmo se entende. “É preciso deixar que os indígenas mesmos tenham as suas produções, a sua voz”, conclui o diretor.
Os bons frutos da Universidade
As pesquisas e experimentações para a obra foram iniciadas dentro da Universidade Federal do Ceará (UFC), na graduação do curso de Dança, lugar frequentado por todos os cinco intérpretes-criadores: Dayana Ferreira, Érica Martins, Clarissa Costa, Júnior Meireles, além de João Paulo Barros, que também está em cena. Orientados pela professora Emyle Daltro, os estudantes /artistas se debruçaram sobre a pesquisa que resultou no trabalho de conclusão de curso de João Paulo.
Contrariando o argumento de que, por ser um ambiente institucionalizado, a universidade seria prejudicial à criação, muitas produções estão surgindo dentro do curso e ganhando os palcos do Ceará. “Viração” é um exemplo disso, onde os curso de graduação em Dança (Licenciatura e Bacharelado) se constituem como espaços de formação e de experimentação. “Para além dos conteúdos, formatos e diploma, a academia é importante, pelo encontro entre as pessoas. A despeito de todas as questões que possamos levantar sobre o que há de problemático, sem esse encontro entre artistas e pesquisadores, o “Viração” não seria possível. E, por isso, sou grato ao curso, aos professores e aos colegas, em especial aos que estiveram diretamente envolvidos na construção do Viração”, declara João Paulo.
Pesquisa e processo criativo
Dentro de um quadro de bailarinos com características físicas diferentes entre si, seja de altura, peso e tonicidade muscular, percebe-se uma escuta apurada, à medida que improvisam composições dentro das possibilidades dadas pelo roteiro dramatúrgico. De forma colaborativa, o trabalho foi elaborado a partir de experimentações, jogos e exercícios de improvisação, aspecto recorrente no estudo e na produção do recente diretor. A criação, portanto, advém de um pensamento conjunto, onde todos contribuem, característica comum a espetáculos de dança classificados como contemporâneos.
“O termo ‘intérprete-criador’, mais do que ‘bailarino’ nasce como um modo de marcar, na dança, este lugar do bailarino que não só faz o que o coreógrafo manda, mas que ele mesmo propõe, constrói uma dança para as propostas do coreógrafo. Por isso, é um intérprete, mas também é um criador. Então,eu muito mais acolho do que digo o que fazer”, fala João Paulo a respeito do modo de compor do grupo.
Dentre os costumes indígenas que os inspiraram, destaca-se , segundo o jovem diretor, o ritual Kuarup, pertencente aos povos Xingu, que vivem no estado do Mato Grosso. Ao observar videografias dessa cerimônia, o grupo começou a desenvolver uma partitura de movimento cíclica, com ritmicidade binária e, por vezes, repetitiva, dando a noção de unicidade corpórea. Além disso, o Toré, ritual presente em manifestações de diversos povos indígenas do Nordeste, também é apontado como uma forte referência para a obra.
Já quando perguntado sobre nomes de pessoas que influenciaram na composição do trabalho, são destaques, segundo João Paulo: Lia Rodrigues, Paulo José, Gilles Jobin, Viveiro de Castro e Grotowiski.
Financiamento e novas temporadas
O projeto do “Viração” encontra-se em situação parecida com a da maioria dos grupos formados por artistas independentes no Ceará: ficar de olho nas divulgações de editais de financiamento público para, assim, conseguir meios de entrar em cartaz. O projeto foi, inicialmente, contemplado pelo Edital das Artes de Fortaleza 2016, da Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor), estreando temporadas na Vila das Artes, no Teatro Universitário Paschoal Carlos Magno e no Espaço Viva Capoeira Viva. Posteriormente chegou ao Teatro da Boca Rica, integrando a programação do Maloca Dragão 2018. No mês de agosto, foi selecionado pela convocatória do Instituto Dragão do Mar de Arte e Cultura para fazer parte da Ocupação Experimental do Porto Dragão, sendo apresentado na noite do primeiro sábado de agosto, dia 4.
Segundo o diretor do espetáculo, não há previsões precisas para apresentações futuras dadas as necessidades escassas de financiamentos para a produção.
Opinião do público
Após receber recomendações para assistir ao espetáculo, Marília Pedroza, jornalista e estudante do Curso Técnico em Dança do Porto Iracema das Artes, resolveu ir ao teatro sábado à noite e tirar suas próprias conclusões. Segundo ela, a temática escolhida e a admiração pelo elenco foram fatores que a atraíram bastante.
Marília diz ter achado interessante a movimentação desenvolvida pelos bailarinos e que certamente é um espetáculo que recomendaria a seus amigos. “Até quando eles acabaram, foram agradecer e disseram que não são índios e se perguntavam durante a pesquisa e o processo criativo como criar esse trabalho, essa colocação também foi muito pertinente”, afirma.
As escolhas dos elementos cênicos, segundo a espectadora, foram sábias e contribuíram para abordar a questão de maneira eficaz. “A dança, no sentido de que todas as pessoas podem dançar e de que muitas pessoas têm contato com ela, com algum de tipo de dança em diversas fases da vida, é algo acessível e próximo das pessoas. Por tudo isso, acredito que a dança é uma forma de linguagem que chega às pessoas sem grandes dificuldades”, avalia. Ela pondera ainda que “levantar o debate acerca da questão indígena – o que, por si só, já é algo bem importante para toda a sociedade – pelo viés da dança é de muita importância”.
Saiba mais
Você pode se informar mais a respeito do “Viração” acessando a página:
https://viracao.webnode.com/
*Reportagem sobre o espetáculo “Viração”
Por Priscila Tavares (jornalista, bailarina e pesquisadora em Dança).